sexta-feira, 9 de julho de 2010

Taxista // O cara era estranho. Crescera sem mãe, às barbas da torcida organizada. Era grande como o avô que defendera divisas de um time da segunda divisão. Corpulento, feioso. Depois de todas as possibilidades cabíveis a quase dois metros de ignorância, casara com moça boa e pequena... Simples. Percebendo o marido com peculiar tradução, convencera o fulano a assumir o táxi do cunhado. Era mais tranqüilo, confortável. Pagaria diária menor e autonomia por conta. Indagado pelo dono do veículo sobre qualquer pendenga pessoal fora enfático. - Só não posso com sangue. Tenho horror! Borra de carro é gasolina, completava... Mas a couraça surrada escondia um temor sem precedentes dentro daquele garoto velho. Poderiam ser lembranças sem tempo preciso. Ou paço. Um inconsciente carregado e contido por camadas de pele. Conhecia o chicote e odiava... Sangue! E o meio jamais fugiria daquela pessoa. Retirar o mundo turvo de um sujeito cheio de calos era tarefa quase impossível. Carne e espírito. Uma pessoa comum e um descomunal tamanho; Mas amava uma mulher. Era breve a sensação de ser maior ainda. E mal sabia ler, um grosso. Mas não respondia a esposa, e só dirigia a palavra em tom bíblico, quase sussurrado. Nada planejado. Não saberia nem como fazê-lo! Como criança que namora bicicleta nova. Sabia agradecer. E passavam os anos, felizes, pueris. Fizera reconhecida clientela, e se orgulhava de saber nome e sobrenome de cada um... Difícil era translado com estranho, mas numa dessas esquinas nojentas de Copacabana, pegara uma senhorinha que carregava um corpinho franzino, frágil; No entanto, conhecia aquele corte de cabelo pintado, as sobrancelhas, o nariz torto. Era exímio fisionomista! Coisa de quem não sabia ler. Memória fotográfica para sobreviver na selva. - Há quanto tempo, disse com sorriso esburacado. A passageira, sem fôlego, agradeceu a recordação. Fazia meses, dizia, que a luz do sol submetida à espessa parede de hospital, tinha a cor fria. E Radioterapia, isolamento. Um verdadeiro horror, culminado numa cicatriz que ia do Oiapoque ao Chuí. Possuía uma casca e órgãos essenciais. O médico e o tempo concordavam. Se forem meses ou anos. Ninguém saberia responder... E o pobre do motorista, esverdeado e pálido, não conseguira interromper tão sentida narrativa. Uma impressionante riqueza de detalhes, veias, artérias, agulhas. Quase um cadáver, pensava. Um relógio biológico que contava folhas, não horas, zaranzando no banco traseiro de um táxi. O que se esperar se não há nada... A esperar... Mas não perderia a pose tão facilmente. Sentia-se preparado com os anos labutados atrás do volante. Muito mais um relações públicas que um motorista. Deveria ser forte, transparente, humano...!... Às vezes, não era!! E o bugre, absolutamente pálido não resistiria; Antes de vomitar o almoço, abriu a porta num canto de avenida e transbordou. Não percebera, no entanto, um caminhão sombreando o asfalto. Todo o intelecto pequeno e quilômetros de cerebelos rolaram dentro da cabeça alguns poucos metros. O pescoço decepado pendia sobre o volante que sustentava imóveis as mãos cheias de calos e ainda quentes. A passageira enfartara de vez, e a platéia enlouquecida ria e aplaudia. Era a notícia do dia seguinte. Sobre o velório, um abraço... Eu é que não fui!