terça-feira, 31 de março de 2009

O Mímico (parte 1) // Soubera daquilo quando certa manhã, atravessando à rua principal atrelado as mãos do pai viu gargalhando em silêncio absoluto o cidadão alvinegro. Derretia a maquiagem, mas não perdia o prumo. Contava sem voz os trejeitos dos outros como se até íntimo fosse. Não perdia o sorriso, e não falava. Nada, nem à toa. Mesmo os apressados se rendiam com suas sobras de moedas, sem entender direito o que tudo aquilo significava, ou mesmo o que deveria... Um contraponto de paz, de sonho, em meio ao bisonho engarrafamento de carne viva e desumana circulante. Contorcia o maxilar, provocava rugas, aproveitava o ensejo de um bocejo. E o velho, sabedor dos olhinhos de criança brilhando, explicava professoral, a cultura francesa e o palhaço mudo que gesticulava o contorno de tudo solfejando sem ruídos o que torneava a calçada, os gestos e passantes. Mímica! Finalmente! Este era nome da nobre arte... Se soubesse a profundidade que se estendia por trás daquele acaso de percepção, um sujeito bem sucedido com medo de pobreza jamais declamaria aquela história. E era bom nisso! Particular articulação... Mas fora prometido, e era tradição familiar. A pura linhagem dos mais renomados médicos de toda uma região; deveras importante. Afora um primo distante ortopedista, era quase uma maçonaria de cirurgiões. Reencarnação de cangaceiro, que retornava. Paga de outra vida. E por ela a dedicação e o tempo integral... Salvar o próximo, objetivando a vida. O princípio católico, status. Nada que diminuísse a profissão. E entre os livros espessos dos aspirantes a "profissão medical", dobrava as horas para freqüentar cursos e percursos. Em segredo, na calada. Quieto como jacaré que olha. Percebendo a ponta dos dedos, mãos, pés. Se rendendo a anatomia acompanhada de outra forma, dimensionada muitas vezes, a explicação científica dos membros. Viu o maior mímico de todos os tempos no Municipal do Rio de Janeiro quase em segredo. E chorou com a partida dele. Precisou estar triste, estranhamente triste, para poder novamente sorrir. E controlar músculos, impressionar professores, passar em provas, se dividir num só. Identificava-se por vezes com cadáveres de aulas de dissecação. Tudo o que pudesse insinuar uma notícia de expressão eram captados com antenas de inseto. Paralelamente, era formatado o homem prometido, mestre na manipulação das ferramentas delicadas, um pajé da alopatia moderna. Dono da cura, de um pomposo diploma, segundo testemunhas oculares que trajavam uniforme branco, exímio cortador de peles, tecidos e órgãos. Extirpava a descrença e quase não falhava. Orgulho nacional de uma sucessão esperada. Enfim! Haveria uma continuação...